Voltar | Ajuda
     
     Em tempo real  
 Destaques
 Economia
 Educação
 Esportes
 Geral
 Mundo
 Política
 Ciência e Saúde
 Tecnologia e Internet
 Variedades


  VilaBOL
VilaBOL

 
Notícias >
 
Envie esta páginaEnvie esta página

Domingo, 01 de fevereiro de 2004 08h26
Pesquisadores tentam desvendar como armazenamos lembranças
REINALDO JOSÉ LOPES
free-lance para a Folha de S.Paulo

Os gregos sabiam do que estavam falando quando fizeram de sua deusa Mnemósine, a Memória personificada, a mãe das Musas e, portanto, a raiz de todas as artes humanas, da história à astronomia.

Entre os escandinavos, nem o deus supremo Odin podia se dar ao luxo de fazer qualquer coisa sem o par de corvos gêmeos, Hugin (Pensamento) e Munin (Memória), que se empoleiravam em seus ombros. A capacidade de estocar eventos, coisas e sensações na mente está entre as bases do raciocínio e da criatividade de deuses e homens --e entre os mais duradouros enigmas da ciência.

Depois de décadas analisando as interações moleculares entre células nervosas em animais e seres humanos, os cientistas conseguiram aprender muito sobre como as conexões entre neurônios nascem e desaparecem, mas relativamente pouco sobre o processo físico de armazenamento (ou descarte) de memórias.

O desafio agora, avaliam neurocientistas, é compreender como o quebra-cabeças da ligação entre cada um dos cerca de 100 bilhões de neurônios se organiza em unidades maiores para armazenar ou alterar as memórias.

Freud revisitado

Um dos últimos avanços nessa visão integradora dos processos da memória não tem nada a ver com sinapses e neurotransmissores (respectivamente as conexões entre as células nervosas e os mensageiros químicos do cérebro). O trabalho, publicado na revista americana "Science" (www.sciencemag.org) no dia 9 do mês passado, acha um mecanismo cerebral que poderia explicar o conceito de repressão, desenvolvido por ninguém menos que o psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939).

Malhado incessantemente pelos neurobiólogos nas últimas décadas, Freud teorizava que memórias poderiam ser apagadas, voluntária ou involuntariamente, mesmo depois de adquiridas. Há quem trace uma distinção entre repressão (inconsciente) e supressão (consciente), mas os autores do trabalho na "Science" afirmam que essa distinção de terminologia foi, na verdade, introduzida pela interpretação de Anna Freud, filha do psicanalista.

Seja como for, o trabalho de John Gabrieli e seus colegas da Universidade Stanford, na Califórnia (EUA), mostrou que a supressão consciente é um fato neurológico. Gabrieli pediu que um grupo de pessoas memorizasse uma série de pares de palavras, de forma que a menção de uma delas evocasse a outra. O pesquisador monitorou então o cérebro dos participantes usando ressonância magnética funcional, que permite visualizar os grandes compartimentos do cérebro em ação, enquanto lhes dizia uma das palavras e pedia que recordassem, ou esquecessem, a outra.

Os resultados mostraram que, além do desempenho pior quando se pedia às pessoas para esquecer, havia uma significativa diminuição de atividade no hipocampo --uma região enovelada no meio do cérebro, que há tempos está relacionada ao fortalecimento de memórias. "É a primeira vez em décadas que um artigo nas revistas de topo de linha começa e termina citando Freud sem descer o sarrafo no velho", brinca o neurobiólogo brasiliense Sidarta Ribeiro, que faz pós-doutorado na Universidade Duke (Carolina do Norte, EUA). "O trabalho de Gabrieli aponta uma direção muito interessante, que é o papel do eu consciente na consolidação das memórias. Ou seja, esquecer é tão importante quanto lembrar, e o cérebro faz isso ativamente", avalia.

Príons e príons

Apesar da necessidade de conhecer o cérebro como sistema, novos atores moleculares da memória continuam a aparecer. Um deles pode ser o príon celular, versão normal da proteína que causa o temido mal da vaca louca. Iván Izquierdo e seus colegas da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, em São Paulo, demonstraram que a proteína desempenha um papel importante (embora ainda um tanto misterioso) nos processos da memória.

Em camundongos e ratos que tinham a produção de proteína impedida pelos pesquisadores, tanto a memória de curto prazo quanto a de longo prazo se mostrou danificada quando a equipe tentou ensinar aos camundongos diversas tarefas. Os bichos também se moviam menos, mostrando-se menos desenvoltos (até defecavam menos) em ambientes abertos.

Daí a saber qual o mecanismo bioquímico ligando a falta de príon celular a esses vários comportamentos vai uma bela distância. Já se sabe que a molécula influencia a formação dos axônios, os terminais que ligam as células nervosas. "A formação de novos terminais axônicos e a ramificação dos existentes podem ser um ótimo mecanismo. Mas pode haver além --ou em vez-- disso outros mecanismos", acautela-se Izquierdo.

Outra possibilidade, levantada pelo Prêmio Nobel Eric Kandel e seus colegas da Universidade Columbia, nos EUA, é a de que moléculas parecidas com o príon versão malévola (capaz de induzir a alteração da forma do príon normal) sejam um dos mecanismos por trás do armazenamento de memórias. A molécula na berlinda é a CPEB, presente nas sinapses da aplísia, espécie de lesma marinha muito usada nas pesquisas de neurobiologia. O pulo-do-gato é que a versão "priônica" da CPEB é extremamente estável, o que permitiria usar a molécula, segundo Kandel, para cimentar as memórias.

"A relação entre CPEB e plasticidade sináptica é ainda especulativa", afirma Izquierdo. "Os mecanismos do armazenamento são desconhecidos. Acredita-se que dependam de alguma modificação nas sinapses usadas para adquirir uma memória, mas na maioria dos casos não fazemos a menor idéia de quais sejam essas sinapses", avalia o bioquímico da UFRGS.

Seja como for, os cientistas parecem concordar que é hora de pensar em relações muito mais amplas entre os grandes "órgãos" do cérebro, como o hipocampo e as várias regiões do córtex.

"Acho que o grande nó, o grande desafio para entender como funciona a formação e a expressão de memórias de longo prazo, é a neurobiologia de sistemas. Mas vai demorar um pouquinho: a máquina é finita, mas é bastante complicada", diz Ribeiro.

"Os paradigmas mais reducionistas já cumpriram sua função, em grande parte. Ainda não foram capazes de explicar por que me lembro de certo sorriso dos meus netos, sob certo ângulo e com certa luz, em determinado dia, a certa hora", afirma Izquierdo.

É bom lembrar essas palavras.

Envie esta páginaEnvie esta página

Notícias >